Não gostamos de falar de morte, nem de baratas, ratos, cocô, mijo, mosca. Onde, que isto é coisa estranha a vida de todos nós? Qual o problema? Tinha um colega na escola fundamental, o Sidney. Uma pessoa extremamente versátil; digo isto hoje. Quando o conhecia, não sabia que adjetivo usar,ele era considerado desajustado pela nossa escola, ainda muito repressora, nos anos setenta, do século passado. Havia no currículo escolar da época, o que era chamado de Atividades Livres. Mas, recebíamos notas e tínhamos de ter frequência. Ditas "Livres", porque era da nossa escolha.Eram obrigatórias, para a integralização curricular. Podíamos escolher uma ou duas em cada semestre. Fiz quase todas:Educação para o Lar, Artes Industriais, Técnicas Comerciais, Teatro, Dança, Música e havia também filmagem, se não estou enganada, ligada ao jornal... Não lembro direito agora....Lembro que um acontecimento causou grande impressão em mim por causa do horror que se tem de certos insetos e coisas que naõ se gosta de falar.
Estávamos em Educação para o Lar. A sala de aula era uma casinha. Saleta, cozinha completa, quarto, berço. Interessante; não tinha cama. A professora muito compenetrada falava de tudo, que era óbvio para mim, aqueles assuntos eram do meu conhecimento, acho que de todos nós, por mais pobres que fôssemos, sabíamos o que fazer em uma casa, mesmo que de costume não fizéssemos. As aulas decorreram com Sidney sempre palpitando e sendo repreendido, ele não se importava. Poucas vezes era aplaudido. Havia algo contra ele. Talvez porque fosse escura a sua pele e seu cabelo se apresentasse em bagas, como se ele não penteasse,....seus olhos eram muito grande, com aquela expressão de que tinha o mundo todo dentro. Ele tinha outro mundo. Sua imaginação e inteligência eram excepcionais e , certamente que isto era um incômodo. Pessoas como ele, como nós, não podiam ser inteligentes , nem criativas, nunca deveríamos nos sobressair. Nunca teríamos razão, mesmo que tivéssemos.Entendo assim , agora....
Mas, chegou a hora de praticarmos alguma coisa. Já havíamos estudado de forma breve a importância dos alimentos frutas e verduras fizemos uma vitamina de frutas, um frapê de todas as frutas possíveis, eu só pude levar laranjas, Sidney levou abacaxis e mangas . Esta prática terminou em paz , mesmo com as reações da professora e as investidas do Sidney . A professora reagia sem cabimentos com o Sidney. Hoje eu me pergunto qual seria o problema dela com o meu coleguinha. A coisa ganhou proporções amedrontadoras na prática da utilização das verduras. Fizemos uma sopa de verduras.Após o cozimento liquidificamos tudo e depois fervemos um pouco mais. Me comportava com muito cuidado nesta aula porque eu via a reação da professora com os outros colegas e não queria aborrecê-la, que fizesse da mesma forma comigo, de jeito nenhum... O clímax se deu quando a professora pediu que contássemos como foi todo o processo. Poderíamos escrever, desenhar ou dizer oralmente
Escrevi e desenhei o processo, como um croquis ; Sidney aplicava-se a um desenho. No final, a professora disse. O tempo de preparação acabou, como é que cada vai contar? Começaram as explanações. Chegou a minha vez, expliquei meus desenhos, outro e outro e chegou a vez de Sidney. A professora ficou paralisada. Seu semblante tinha algo estranho eu não conseguia definir e quando ela virou o papel para nós; lá estava a cena. Um menino que certamente era ele de perfil, o próprio autor do desenho, o Sidney debruçado sobre um prato de sopa e com linhas pontilhadas, partindo de seu olho, bem arregalado e terminando dentro do prato no líquido, a sopa em uma mosca bem nítida, sobre a sopa. Achei o desenho muito interessante! A professora vociferava. Isto aconteceu aqui? Não havia acontecido. Não vimos nada daquilo. Invenção de Sidney eu disse, acrescentei uma brincadeira dele! A professora muito zangada virou-se parra mim e disse: isto é muito sério, por ser falso. Não ocorreu aqui! Eu solicitei que se relatasse da forma que quisesse o que se passou aqui.
De certa forma ela estava muito certa, eu entendia. Mas, eu achava que aquela raiva toda era um exagero. Foi um horror. Vi o medo e a frustração no rosto lívido de Sidney. Notei que Sidney era muito estranho entre nós. De repente seu semblante passou a demonstrar uma grande dor e ele disse. Desculpe professora, por favor me desculpe .Eu pensei nisto. Eu pensei, não aconteceu aqui. Aqui não tem nem mosca, eu não vejo nenhuma. Minha ideia. A professora pediu que ele contasse oralmente as etapas do processo ocorridas naquela sala casa.... Ele relatou de uma forma bem humorada e as gargalhadas estancavam a cada sinal da professora. No final a sua avaliação foi muito boa, não foi melhor por causa de todos os incidentes na aula... a professora era passional. A minha também não foi excelente. Foi boa. Ganhei um oito.Naquele tempo queríamos sempre boas notas, excelentes notas. Outro tempo. Havia medias a alcançar e, na maioria queríamos sempre estar por cima da média, o que nem sempre era possível por diversos fatores.
O mais forte fator eram os professores e suas cargas. A professora não considerou meu portfólio dos encontros, naquela sala e que eu nunca havia criado contrariedade, que fazia tudo...Mas, eu só levara laranjas e abóbora para a prática dos alimentos, talvez isto a contrariasse, eu pensava assim na época.Talvez, ela quisesse variedade de frutas e verduras. Na maioria, levamos o que tinha em casa. Fiquei com lembranças úteis, daquele curso e nunca poderia esquecer o Sidney. Um menino sempre limpo e esperto, criativo e fora da caixa, na nossa grandiosa escola. Estou pensando como estará ele agora. O que faz.Deve ter filhos e netos. Estará vivo?
Graça Nunes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário