quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Meus invernos.

 Comecei a prestar atenção nos dias chuvosos. Havia uma grande preocupação com a chuva, naquela época por causa da casa de minha avó, que era uma casa antiga e já estava vencida. Não havia dinheiro suficiente para uma obra. Sendo desta forma, vivi um inverno memorável.As paredes mais vulnerabilizadas da casa cederam.Elas caíram literalmente diante de meus olhos.  Vovó ficara assustada  e triste. Titio também. Ele ainda não trabalhava em uma boa empresa. Só papai trabalhava e já havia se casado novamente. Tudo era baseado na pensão de vovô que vovó recebia  e tinha também a minha pequenina e especial pessoa. Então eu não podia ficar exposta ao frio e bichos.Vovó e titio, fecharam a parede toda com o que puderam e ninguém via nada, da situação da parede, por que havia a casa de Sr. Deraldo, afastada da nossa, por um pouco mais de um metro.Mas, tomava-se pé da situação, quando se entrava. Toda a roça da irmã de vovó, fora loteada e quando Sr. Deraldo fez a medição de seus  lotes, do lado de nossa casa, houve um avanço para o fundo, afunilando o corredor da lateral da casa de vovó. Ela já morava primeiro. Mas, houve este avanço e, mesmo com a insistência de papai para resolver, vovó achou que a medida era tão pouca que isto não influenciaria muito na nossa propriedade e ele acomodou. Mas, ainda lembro dele querendo ir resolver, com uma picareta na mão, partindo para ir arrancar os marcos do lote vizinho. Uma agonia que me abalou. Eu era muito pequena. Lembro que chorava e gritava com a confusão dentro de casa. Não sei se esta foi a primeira que presenciei de papai...Depois eu vejo isto. Mas, quando chegou o inverno de 1963, eu já estava na escola. Minha professora, chamava-se Angelina.Eu ia com ela todas as manhãs. Um pouco depois das doze, eu retornava , com ela e via minha avó, que estava sempre na janela, de olho na estrada, me recebia como se eu chegasse de uma viagem distante. Estava me esperando para almoçar.Se fosse uma sexta-feira, comíamos peixe;  corvina de moqueca ou frito, com arroz e feijão e farofa. A farinha não poderia faltar, nem a banana. Havia muitas bananeiras na região. Mas, no inverno eu via muitas touceiras de bananeiras, do outro lado do vale desabarem,  uma atrás da outra,da forma, como hoje conhecemos, o efeito dominó. Algo impressioante. Mas, quando as chuvas passavam,lá estavam todas, de pé. As da casa de Tutucambe pareciam que eram inabaláveis. Tutucambe é uma história que acho que já contei. Mas, quero só falar de inverno agora. Depois de um tempo considerável, a casa foi refeita e ficou bonitinha, casa de pobre de roça.Cheia de carinho. Titio e vovó sempre cuidavam dela. Queriam preservá-la. Todo o trabalho de limpeza e higiene ficava com titio.Até mesmo as flores, para decoração. A tradição portuguesa era muito forte. Toda casa naquele lugar tinha  que ter jarrinho de flores sobre a mesa. Eu sempre gostei muito de flores, aprendi a gostar com meu pai, meu tio, minha avó. Pessoas muito doces.Tínhamos um pequeno jardim que durava de inverno a inferno.

Meus casaquinhos de lã de verdade estavam bem ajustadinhos. Mas, eram tão importantes para o inverno, me aqueciam tanto que eu nem ligava para o aperto.Eles iam comigo de inverno a inverno, aonde quer que eu fosse e poucas pessoas me chamavam para vê-lo de perto. Ficavam tão encantadas que eu gostava de saber que tinha algo, que era interessante para as pessoas. Porque eu não tinha muita coisa e era considerada uma garotinha feia, quando criança. Por que? Eu tinha a pele amarelada. Meus cabelos eram vermelhos e crespos. Muito cheios, davam trabalho para pentear e, como doía quando passava o pente, eu, muitas vezes, não deixava vovó pentear direito e vovó aceitava porque dizia: ela sente dor. Então eu ia penteada como era possível para os lugares. Era também  gordinha e barriguda. Eu era monstruosa. Uma criança esquisita. Não entrava nos padrões da época.Mas, lá em casa eu era a rainha e me achava muito interessante. Senti-me aceita e ser muito mimada, me dava muita segurança pessoal e autoridade. Eu não tinha vergonha de nada. Era espótica e locaz . Quando fui para a escola, a minha eloquência causou-me problemas.Uma menina como eu não podia falar muito e estar sempre dizendo o que acha.

A medida que fui crescendo fui descobrindo minha vida. No inverno de 1963, o frio era mesmo intenso e eu vivia  com um capote que não me cabia mais. Então, a esposa de papai deu-me um capote que era dela. Deu-me também uma sombrinha. Agora eu tinha um capote, bem maior.Uma capa. Tinha uma sombrinha grande. Aquele capote não me agradava.Aquela sombrinha enorme, eu gostava da cor amarelo ouro, cor do  nascente no verão e ouro bom das tarde verônicas. Bem, como eu era pobre, sentia frio, aquelas doações eram bênçãos.. Vovó dizia: seja grata. Eu não via nada para agradecer. Mas, agradecia e usava com gosto.Eu precisava. Fazia muito frio. O casaco me esquentava. Tava dentro do que era. O casaco de lã de verdade ,valia para a noite. Desconfortável! Mas eu sentia frio e precisava de usar algo mais limpo, para dormir. O outro andava na rua. Nas minhas corridas. Sempre me diziam para não correr. Não corra, não corra, não corra. Mas, correr era o que mais aquecia e eu parecia uma cabra, cabrita ou uma mula no campo da escola. Lá ninguém me impedia.Até a professora Angelina ver. Maria das Graças, cuidado para não cair, sua avó não quer que você caia. Eu estancava até ela voltar para onde estava e não me ver, para eu voltar a correr. Quando ela não estava olhando, eu voltava a correria, naquele chão barrento da escola ou me jogava no gramado molhado. Naquele ano, meu primeiro ano de escola, meu pai achara sem importância fazer minha farda. 

Eu ia para a escola como se fosse para um aniversário, com a capa  que minha madrasta mandara para mim por cima. Algo diferente inusitado. Gostaria de estar de farda, como as outras poucas meninas. Nem todos tinham farda no primeiro ano e nem todas as meninas tinham vestidos bonitos e fitas coloridas, somente eu. Tampouco uma capa de malha de lã, estranha como a minha. Isto afastava. Eu vivia só. Mas, tinha Manoel e Everaldo que corriam atrás de mim sem eu pedir. Eles amavam me ver correndo Eram crianças como eu . Não sei porque era assim, no segundo ano eu não parava o recreio todo, só correndo, correndo, dando voltas no campo da escola com Manoel e Everaldo correndo atrás de mim. Vou te pegar, vou te pegar. Interessante isto. Acho que era para compensar o tempo sem exercícios em casa.

Eu adoecia muito quando criança. O colchão era de palha, com um forro listrado. Achava que aquilo era só lá em casa . Eu não gostava. O cheiro era sufocante, eu me sentia mal. Fazia tudo para não sentir.Mas, percebi que era algo comum, quando passei a ir na casa de outras pessoas e olhar discretamente para um quarto cuja cama estivesse desforrada para ver  as listras azul escura ou pretas na cama  o famoso colchão. Todo pobre tinha daquele colchão..Não sei se ainda existe. Achava que era aquele colchão que me fazia adoecer..Ainda não tínhamos a espuma. A doença era suportável pelo carinho e cuidado de vovó. Depois da tormenta da febre, era uma ressurreição. No inverno sempre tinha um nhem,nhem,nhem. Ficava muito triste por não poder  ir a escola. Por outro lado adoecer era tão bom. Muito colo, muito dengo. E, quando a gente retornava, depois de uns dias em casa, a receptividade era tão boa que dava gosto, uma doença...

O que você teve? Caxumba....Gripe, sarampo, dente doendo. Garganta.  Cai e desmenti o.. Foi a chuva, choveu muito, não deu para sair de casa...Sim, para não se molhar , ficar gripado e até morrer... Meu Deus!!!!! Um outro mundo.A canção de recepção:"Bem vindo, bem vindo, bem vindo.Sentimos falta de você.Agora você voltando, que beleza te ver.Seja sempre bem vindo . Fique conosco e não nos deixe mais. Não falte mais, não nos deixe mais."Hoje , eu entendo, que era uma canção anti evasão escolar. Eu sorria. Mas, tudo aquilo me aborrecia. Eu estava ausente por necessidade. Eu sempre dizia: "Eu queria muito vim para escola. Mas, não podia....". A cantoria estridente e a cara daqueles e daquelas que não me suportavam por causa da minha roupa. Eu não tinha a palavra certa. Mas, era inadequado.Aprendi esta palavra com vovó. Não caia bem; esta expressão, aprendi com papa .(Continua....)

Graça Nunes


 


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