sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O florista do Tororó.


 Era um sobrado e ficava em uma esquina. A rua Amparo do Tororó, que é um bairro de Salvador,  Bahia. Ficava já na parte, que tem um declive, na rua Amparo . A penúltima casa, antes de uma esquina. Um sobrado. Enorme a casa.  Era ali que o Beto morava. Beto ficava sozinho em um andar. Sua mãe morava embaixo, com seus netos e filha. O  tio de Beto afirmava que havia sido preso e torturado na época da  ditadura militar, neste país. Para isto se torcia o nariz e olhava-se de viés, diziam ser alucinação dele, porque era cachaceiro e drogado; ele morava com a mãe, um pouco mais velho que Beto, que era mais novo que eu. Na casa de Beto se fazia um chá e tomava-se chá com cuscuz, manteiga. Conheci Beto por um amigo; o Marinho. Na ocasião Beto fazia Filosofia e vivia tentando superar a perda do pai. Ele havia tido muitos problemas com seu pai, talvez por isto, a morte de seu pai foi um acontecimento traumático para ele. Em uma parte parte do sobrado, uma lojinha um pouco abaixo do nível da rua, morava Seu Abntonio, uma pessoa tão pequenina e delicada, muito frágil e já idoso.

Seu Abntonio era florista. Fazia flores maravilhosas. Recebia muitas encomendas. Fui lá uma vez e entrei em sua pequena casa. Tudo muito limpo. As flores estavam todas em recipientes, com etiquetas. Todas, uma obra de arte. Senti que seu Abntonio  não gostou muito de mim. Senti-me estranha na casa dele, apesar de ter gostado da casa e não dei muita bola para a ponta de rudeza com que me tratou embora educadamente. Tratei-o elegantemente, estava em sua casa e já havia percebido que ele talvez preferisse que os meninos levassem um garoto, em vez de uma garota negra. Não uma garota. Entendi tudo. Só entrei esta vez. Ele não entendeu eu estar com os meninos. Mente suja. Mas, eu não sabia tudo sobre a vida daquele homem, digno de pena para mim. Parecia adoentado. Sozinho naquela casinha com apenas uma janela que dava para a rua, no verão poderia ser muito quente e no inverno, mofada. Sua casa ainda esta lá. Uma janelinha e uma porta.

Era o território de seu Abntonio.Certa vez, era dia claro, cheguei lá e ele estava com a porta cheia de rapazes com receptáculos cheio de flores. O pessoal que trabalhava para ele; vendedores de flores. Sim, ele era um florista, um homem idoso e solitário. Cheio de história. Preconceituoso. Não gostava de gente de pele escura. Misógino, não gostava de mulheres. Mas, era pobre e morava naquela casa, na lojinha da casa da mãe do Beto. Acho que alugava. Queria saber mais sobre a figura. Mas, os meninos muito discretos e educados não quiseram entrar em detalhes. Tive vergonha e parei de fazer perguntas. Mas, pessoas como aquele homem, tomava espaço em meus pensamentos. Gosto de saber da vida alheia. Elas se tornam sempre histórias especiais. Principalmente as que têm singularidade. Gostaria de saber de onde aquele velho tinha saído. Sempre morou em Salvador? Era filho de quem? Por que era florista?

Depois de certo tempo soube que o Sr. Abntonio havia deixado a carne. Fiquei triste. Mas, as pessoas envelhecem, esclerosam-se e quebram o fio da vida. Todo mundo é assim do polo Norte ao polo Sul , de Leste a Oeste do mundo. Aconteceu com ele e com muitos. Todos os dias morrem milhares de pessoas. Todos os dias nascem milhares de pessoas, para morrer dias, semanas, meses anos depois do nascimento. Por que o florista não morreria? Morreu; como qualquer outro homem e morreu depois de ter vivido um bom tempo e ter feito muitas flores. Nunca esqueci a casa dele, fiquei impressionada com a ordem. As flores de tons sempre delicados e formas variadas. Nunca havia visto flores daquelas, desde o último casamento que fui. Mas, confesso a beleza e o formato, o colorido eram menores em relação as do florista. Puxa! Sr Abntonio era uma entidade.

 Faz um bom tempo que soube de sua morte. Nunca mais tinha visto Marinho. Ai, numa tarde destas de outono, encontrei-me com ele na rua do Desterro, próximo de sua casa. Rimos muito. Não podíamos conversar muito eu tinha muito o que fazer naquela tarde  morna e coincidentemente, o Marinho também. Então foi um papo curto de perguntar e responder sobre  algumas pessoas lembradas e nossas histórias. Como andávamos pelo centro da Salvador toda. Tudo se afastou. Ficou para trás.Até nossa amizade e grande companheirismo. A gente parecia casal e não éramos, não podíamos ser.  São boas lembranças. Histórias engraçadas. Papos sem igual. Passeios, música...Foi um tempo de muita intensidade. Uma amizade boa. Uma fase complicada na minha vida, onde eu começava a descobrir meu espírito boêmio. Achei pessoas que eram companheiras de verdade e me ajudaram a cruzar uma longa ponte, bastante tremula e passar por um rio de águas profundas, com sentido, para não me perder. 

Lembro de Sr. Abntonio por causa de Marinho e Beto. Eu amava o Tororó. Nos reuníamos muito, para comer e beber e papos quentes. Nunca jogávamos conversa fora. Éramos metidos,  achávamo-nos reis e rainhas da cocada morena, na Bahia  e acho que a gente era mesmo. Beto faleceu nos anos noventa.Ainda muito jovem. Estava em outro lugar do Brasil. Não morava mais em Salvador. Antes disto, uma de suas sobrinhas também morrera. Não sei mais de Marinho. Mas, nunca esquecerei Sérgio seu grande amigo seminarista, advogado que virou procurador federal e ai teve que calçar sapatos, porque andava de sandálias havaianas, chinelinhos, vestisse o que vestisse. Foi morar em Brasília e não se tornou padre. Um doce o Serginho. Um rapaz rico, materialmente rico que não se tornou padre. O sobrado só vive fechado. 

Estou seguindo em outra posição, na mesma estrada, acho que um pouco atrás de tudo. Escolhi seguir assim, a forma mais confortável que achei. Depois de me separar daquelas pessoas, muitas outras histórias, que posso contar em outra oportunidade. Talvez a gente, vivendo e caminhando, ainda se encontre. Estamos indo no mesmo sentido; em frente marche!

Graça Nunes.

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