quarta-feira, 24 de junho de 2020

Relíquias em panos.

Minha avó tinha uma caixa de madeira grande, bem polida onde ela guardava toda a roupa de cama, mesa e banho de "ver Deus", muita coisa ela usou pouquíssimo ou não usou. Digo usamos , por que eu morava em sua casa, meu primeiro e amoroso lar. Era um poderoso enxoval.Acho que era para mim, quando eu casasse. Muitas peças de beleza visual, algumas produzidas por minha tia paterna e por sua discípula D. Cristina que tornara-se fornecedora de vovó de forma sazonal(vovó recebia uma pensão de meu avô) Entre as peças estavam as colchas e toalhas de mesa de richelieu (tipo clássico de bordado), que me impressionavam muito. No inverno, ficavam impregnadas de naftalinas(bolinhas brancas antifungo) e assim que fazia um solzinho, eram colocadas lá fora, sob o sol para aquecerem, eram de linho. Hoje, todo aquele conjunto, todas as peças de cama mesa e banho, poderiam ser muito apreciadas.

BORDADO EM RECHILIEU APREDA A FAZER - YouTube
Imagem de google.com
Vovó faleceu e eu não fiquei com nenhuma dessas peças.Eram impressionantes pela beleza, eu sabia do valor material e sentimental. Mas, eu não tinha casa, não tinha nenhuma intenção de casar, mudava-me muito. O enxoval, não sei se todo ele; ficou com titia.Ela tinha uma filha, minha prima já encaminhada para casamento e eu achei que era muito certo isto. Titia havia sido tão boa para sua mãe, dedicara-se tanto. Cuidara de vovó até que esta morreu.Me suportara em sua casa, por causa de sua mãe...Aquelas peças eram todas abençoadas. A casa de vovó ficara fechada um bom tempo.Eu sempre ia lá, para fazer a inspeção, sempre no final do dia, depois das aulas. No fim da tarde. Em uma dessas visitas, eu cheguei lá já escurecendo. Mas, ainda dava para ver uma gigantesca teia de aranha com sua dona no centro, na escada de acesso, o mato estava dominando o que me fez voltar para providenciar algo que me possibilitasse desmanchar a teia e... Fui pedir ajuda na casa da
 família Bispo, vizinhos bem próximos, protestantes, Batistas.
Consegui uma vassoura. Desmanchei a teia, cheguei a porta. Abri a porta, entrei fui rapidamente acender a luz e tudo parecia no lugar, ate que eu cheguei na cozinha e vi a parte de baixo da porta estraçalhada. A porta havia sido arrombada por  baixo e, certamente, alguém estivera lá ou poderia estar...Sentir forte pavor e gritei alto, escandalizei, não conseguia sair do lugar ...Num esforço além de minhas forças, corri para a porta de saída  e, logo estava na rua e depois , novamente , dentro da casa dos batistas. Meu estado era deplorável. Mal conseguia manter-me de pé. Deram-me água e cambaleante, voltei com D. Francisca. Novamente na nossa casa,  a porta estava do mesmo jeito. Eu havia fechado a porta de frente. Ninguém entrou, nem saiu...Então fui verificar sob as camas;velho hábito.
Eu fazia isto diariamente antes de dormir, quando residia ali...Sempre tinha a impressão, que  alguém pudesse estar escondido, debaixo da cama aguardando que eu e vovó adormecesse para assaltar a nossa casa , ou.... Olhei sob as camas e não havia nada , nem ninguém; somente pó, poeira. Tínhamos deixado aquela casa, fazia alguns meses. Vovó se internara e eu tive que sai da nossa casa. Titio achava que não era seguro eu ficar lá sozinha...No seu tom  de voz, eu senti  que não me pertencia ficar ali, não era adequado...Eu era muito nova, hoje eu não sairia. Mas, ali eu não tinha escolha, peguei algumas coisas minhas, vestes e cobertores e fui atrás dele, para sua casa, para junto de sua esposa, filha pequena, sogra e umas pessoas que moravam na casa e ajudava a família. Eu estava muito triste. Eu sabia que minha vida estava tomando um rumo, que eu não tinha mais controle...Mas, aceitava tudo como era de costume, ia rolando..

Então, como estava dizendo eu não havia mais varrido, nem lavado aquela casa, desde que vovó fora  para o hospital. até aquela data. Precisava fazer isto.  Naquele tempo vovó já estava na casa da filha no subúrbio ferroviário, a contra gosto. Antes de ter alta no hospital, ela me dissera que queria voltar para o canto dela. Eu era de acordo. Mas, havia um problema. O estado dela era de muitos cuidados e eu estudava ainda, isto não seria problema, enquanto eu estivesse na escola ela teria companhia, tínhamos bons vizinhos. Mas, titia disse-me logo que " mamãe não voltará mais para a casa dela.Depois da alta, deverá vir para cá" Eu não senti firmeza nisto e sentia uma imensa vontade de levá-la  para nossa casa, mas não seria prudente. Ela queria ir para o canto dela , onde se sentia tão bem...estava doente e... eu não imaginava que ela estava tão perto de partir, durante toda sua doença, eu não pensava , nem por um pouco que ela iria morrer. Ela ficaria boa. Ela era tão segura, tão lúcida, sempre calma, nunca escandalizava nada; vovó era tão classuda! Vovó era pessoalmente aristocrática, fina. Uma mulher alta. Nunca me afligiu, sua luta era sempre para me manter calma. Eu logo saia dos eixos, eu era ansiosa e,  as vezes, eu não sabia exatamente o que fazer...eu era uma moça vulnerável.

 Minha avó era meu esteio, abaixo do Deus que ela já tinha me apresentado, na sua fé católica e que eu estava conhecendo melhor, em outra denominação.Minha confiança era ela e,  muitas vezes, não pensava bem assim; então por isto a levei para a casa de sua filha, quando ela saiu do hospital. Ela tinha um ferimento. Havia feito uma cirurgia, a nossa casa estava suja, era uma casa rústica, eu precisava tomar algumas providências. Ficaria lá, onde eu já estava, até que tudo se organizasse. Na hora que descobri o arrombamento da porta da cozinha e enquanto eu olhava sob as velhas e empoeiradas camas, que eu sempre lixava e envernizava, da nossa antiga casa, vovó já estava bem recuperada e estava no subúrbio ferroviário, em casa de sua filha única, por alguns meses.
 D. Francisca, a mãe de Elizeu meu amigo, a batista, aquela que dizia a sua filha Ruth, deixa Maria, que ela já se sabe no que tá e eu me sentia marginalizada e não desejava ser da igreja Batista dela, mesmo. Mas, as relações continuavam e vovó dizia-me:" deixa isso para lá; é bobagem de vizinha Chica. Cada um com sua fé; você não quer ser protestante e pronto. Fique quieta.". Eu dizia-lhe: E Jesus quer que se diga: "ela já sabe no que está " para as outras meninas? Vovó. "é ela quem diz; não é Jesus. O que ela diz não vale. Vale o que Jesus fez e não se zangue com ela, por favor." Não demonstraria estar zangada, claro! D. Francisca era esposa do dono do açougue e nos tratava bem, seríamos sempre gratos a ela por sua atenção, éramos pobres materialmente e, apesar de  carne e tutano, bons ossos nervosos para sopa , que sempre gostávamos de receber, mesmo com titio e papai provendo, isto seria subalterno a nossa humildade e o bem estar de nos darmos bem com vizinhos.... Portanto eu relevava e relevei até um dia....
Mas, D. Francisca estava comigo e não me dizia mais que eu sabia no que estava. Eu havia crescido, estava mais alta que ela e era uma moça bonita e elegante, sempre muito bem vestida e penteada (quando queria). Ela me olhava com respeito agora. Eu estava, quase, no que ela não sabia onde eu iria estar, diferente de onde sua única e querida filha, sempre esteve, desde aquele certo tempo, não deveria brincar comigo, porque eu não era crente e certamente que estava no outro caminho e pertencia a Satanás, na mentalidade dela. Ali, nós duas, na casa de vovó, sem vovó, na sala onde ela sentava e conversava com vovó..ela falava comigo com seu revirar de olhos tão bem conhecido, eu não me importava com nada e não me lembro de nada  que ela disse. Suas palavras estavam bem vivas, na minha memória bem ativa e eu a analisava. Ela não estava sabendo o que ocorria, ela não podia saber. Solicitei a ela que, por favor, vigiasse a casa enquanto eu comunicaria a família(naquele tempo eu ainda podia dizer isto: a família), para tomar as providencias ....
Ajeitei a porta arrombada, fechei tudo, reforcei as escoras daquela porta. O fundo era vulnerável. Matagal.... Tranquei a casa e fiz uma oração no meu coração, por aquele lugar tão amado. Onde eu me sentia tão segura, onde eu reinava..Meu canto! Saímos. D Francisca foi para  casa dela e eu comecei a voltar para o subúrbio.Entrei no trem e muitas lembranças  vieram de enxurrada e lágrimas desciam pelo meu rosto e  Fred um amigo de trem que estudava no Colégio João Florêncio Gomes, falou comigo: Oi graça, tudo bem? Vi tanta amizade sincera e ternura em seus olhos azuis.  Respondi " Tudo bem. Estou só lembrando algumas histórias de minha vida..." Está triste. Fique assim não . Tudo passa." Sorrimos. A estação chegou. Me despedi. "Até amanhã. Fique bem Graça. Tua avó ficara boa". Até amanhã.Sim. Ele nunca vira minha avó. Bom rapaz.

 Sim, tudo passa e  bom que passa. Mas, eu não lembro de ter olhado a caixa de madeira. Devia estar lá.Sobre ela, estavam duas malas de tamanhos diferentes. A maior era uma mistura de couro e pele de animal.Objeto bem antigo.A outra, era pequena com fechaduras difíceis de metal , era minha, quando eu era bem pequena.Era nela que eu colocava minhas coisas quando fazíamos a nossa "viajem" de férias, para o subúrbio ferroviário, onde eu estava morando naquele dia.Conversei com minha tia primeiro e ela decidiu ir lá, na casa, pegar todas as coisas aproveitáveis, disse. Eu concordei. Quando vovó ficou sabendo ela disse: Não, vamos voltar para nossa casa. Titia  disse-lhe. Só quando a senhora melhorar. Agora vamos pegar suas coisas , para guardar aqui. Vovó ficou quieta.Ela sabia de todas as coisas. Uma pessoa iluminada por Deus. Mas, seja quem for a pessoa humana, ela é mortal. Dias depois Eu, titia e  meu primo, estávamos na casa, recolhendo as coisas.  Muito triste, tudo se desmanchava, na minha frente.
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A vida é assim. As coisas só têm valor enquanto podemos administrá-las, quando temos saúde para cuidar e podemos dizer: isto é meu! Quando ficamos mais frágeis, quando adoecemos, quando envelhecemos ou quando não temos meios, passamos nossos direitos para os outros.  Minha situação era o último ponto.Eu não podia reivindicar nada. Não podia ficar ali. Não tinha mais casa. Como eu poderia dizer: não tia deixa que é meu, eu cuido? Eu não podia. Eu sabia que não podia e, por isto eu não fazia questão de nada, não queria nada. Entendia o olhar de minha tia. Provavelmente ela via minha tristeza e ela sabia o que fazia. Ela tinha todo o direito. Aquelas coisas eram da mãe dela.

Depois que as coisas foram tiradas e resolvidas  pela família; eu não voltei mais na casa. Ficaram as camas coloniais, a penteadeira colonial de vovó , onde embaixo eu tinha minha casa de boneca. Algumas daquelas arcas antigas, o guarda roupa, do outro quarto, com espelho na porta, o armário da cozinha, ficou o que não "prestava" e algumas coisas eu já esqueci. O veludo que cobria minha cama, não sei que fim levou. Alguns móveis meu primo aproveitou.A irmã  de Tio Eduardo ficou com a cristaleira e reformou toda. Ninguém falou em  momento algum: isto te pertence. Eu pouco me importava. O que me machucava, por demais era a minha avó já quase inválida, era minha vida que a cada dia ficava incerta. Mas, eu tinha  Jeová e isto tem sido tudo para mim, até o presente. As coisas,  são para cada ocasião.As pessoas são maravilhosas.Elas é que valem. Eu sofria por minha querida avó. Sua bondade e a compaixão e amor que teve por mim. Isto é o que me basta. Foi muito fundamental. Tudo valeu a pena.  Viemos nus e não levamos nada material. Vovó partiu, em uma tarde de domingo, no verão de 1977.

Anos depois, tentou-se alugar  a casa; mas, as pessoas não ficavam.Uma delas  foi a óbito. Resolveram vender.Começou um litígio com um primo materno  de papai e titio e o filho mais velho de titia, por causa deste imóvel. Isto durou um tempo. Depois, houve um acordo e a casa foi posta a venda.  Da parte que papai recebeu ele me deu uma quantia que eu coloquei na minha poupança e nunca mexi. Com o tempo,fez parte do montante para adquiri um cantinho. Foi muito importante para mim, tudo isso.As relíquias em panos, os bordados de rechilieu, já devem ter acabado. Todas aquelas peças, provavelmente, já foram consumidas pelo tempo, que não poupa nada nem ninguém. Não deixei de viver, por não tê-las. Tenho feito meus próprios bordados. Agradeço muito a vovó todo amor e compaixão.
 Graça Nunes

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